Sempre quis escrever sobre este tema, por isso reproduzo este excelente artigo, postado no site do SindJustiça Ceará, da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum, vencedora de mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem e autora do romance "Uma Dua".
Nota: Sou bacharel em Direito e advogado inscrito na OAB, e sempre concordei com o que está escrito a seguir.
"Sei muito bem que a língua, como coisa
viva que é, só muda quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a
forma como lidam com o mundo. Poucas expressões humanas são tão avessas a
imposições por decreto como a língua. Tão indomável que até mesmo nós,
mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras que
faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais vezes
ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou
adjetivo e usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas
intenções e sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi
construída com os tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um
pequeno ato quixotesco no meu uso pessoal da língua: esforço-me para
jamais usar a palavra “doutor” antes do nome de um médico ou de um
advogado.
Travo minha pequena batalha com a consciência de que
a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates
profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no
corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e
de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos
que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio
fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é
uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra,
algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é
preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.
Assim,
minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência
cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os
bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do
verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres
para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de
médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a
ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”.
Em
minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por
proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário,
na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil
mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade
que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o
“doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma de tratar
os superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de
racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os
que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram
privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se
estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um
fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do
cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.
- E como os fregueses o chamam?
- Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- O senhor chama eles de doutor?
- Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor....
- É esse o segredo do serviço?
-
Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse
um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé
de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.
A forma
como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como
os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos
de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas
décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro
para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão,
pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco
não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.
Se alguém,
especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é
legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando,
porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma
de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante
assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais
popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa
contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá
explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um
olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer ao
ex-presidente e seu legado.
Se o “doutor” genérico, usado para
tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade, o “doutor”
que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual
quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira,
refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um
declínio também deste doutor?
Ao pesquisar o uso do “doutor”
para escrever esta coluna, deparei-me com artigos de advogados
defendendo que, pelo menos com relação à sua própria categoria, o uso do
“doutor” seguia legítimo e referendado na lei e na tradição. O
principal argumento apresentado para defender essa tese estaria num
alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a
louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde,
em 1827, o título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de
Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de
Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Como o decreto imperial jamais
teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito” dos
advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os
médicos em décadas posteriores.
Há, porém, controvérsias. Em
consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D. Pedro I diz o
seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com
aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o
grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os
requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só
os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a
liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.
Mesmo
que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de
“doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do
Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto do
Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a
tudo o que veio depois?
O fato é que o título de “doutor”, com
ou sem decreto imperial, permanece em vigor na vida do país. Existe não
por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério.
A resposta para a atualidade do “doutor” pode estar na evidência de
que, se a sociedade brasileira mudou bastante, também mudou pouco. A
resposta pode ser encontrada na enorme desigualdade que persiste até
hoje. E na forma como essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.
É
no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos
pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o
cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo
tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses
doutores, no qual o título era uma expressão importante da desigualdade
no acesso à lei. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado
por delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si
como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto
se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos poucos, percebi a
minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma função
fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a
submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam
que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no
amplo sentido do termo.
No caso dos médicos, a atualidade e a
persistência do título de “doutor” precisam ser compreendidas no
contexto de uma sociedade patologizada, na qual as pessoas se definem em
grande parte por seu diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são os
médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo, hiperativo,
bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo
modo, numa época histórica em que juventude e potência se tornaram
valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o poder
médico seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das
intervenções cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência
quanto juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a
longevidade e a morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a
defender que a velhice é uma “doença” que poderá ser eliminada com o
avanço tecnológico.
O “doutor” médico e o “doutor” advogado,
juiz, promotor, delegado têm cada um suas causas e particularidades na
história das mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o
doutor advogado, juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a
autoridade sobre os corpos. Um pela lei, o outro pela medicina, eles
normatizam a vida de todos os outros. Não apenas como representantes de
um poder que pertence à instituição e não a eles, mas que a transcende
para encarnar na própria pessoa que usa o título.
Se olharmos a
partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e o direito são
os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta do escritório
ou do consultório, em geral já está automaticamente numa posição de
submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o que é
melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor
de uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado,
promotor, juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como
abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto de
intervenção.
Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à
Saúde são deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título
de “doutor” permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa
também como viés de classe. Apesar dos avanços e da própria
Constituição, tanto o acesso à Justiça quanto o acesso à Saúde
permanecem, na prática, como privilégios dos mais ricos. As fragilidades
do SUS, de um lado, e o número insuficiente de defensores públicos de
outro são expressões dessa desigualdade. Quando o direito de acesso
tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de desamparo se
estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode
garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar
que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida
brasileira.
Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e
dos “doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e
até exigem o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais
contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na
Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde vivia o
chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência, o
zelador retrucava: “Fala sério....” Não conheço em profundidade os
fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito
significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para
exigir um tratamento que começava a lhe faltar no território da vida
cotidiana.
É importante reconhecer que há uma pequena parcela
de médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se
esforçado para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que
devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o
interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que
essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país mais
igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu
respeito.
Resta ainda o “doutor” como título acadêmico,
conquistado por aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas.
No Brasil, em geral isso significa, entre o mestrado e o doutorado,
cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se doutorar, é
preciso escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o
título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo e da produção de
conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma
carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma
exigência para se candidatar ao cargo de professor.
Em geral, o
título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito acadêmico e
nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na publicação
de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral, nenhum
destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula
ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem,
oscilariam entre o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não
são estes, com certeza, os doutores que alimentam também na expressão
simbólica a abissal desigualdade da sociedade brasileira.
Estou
bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma
provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar
tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e
de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de
mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor
beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem desta
para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde –
sempre foi."
Deus abençoe você!
Álvaro Amorim.
Imagem: http://www.freeimages.com/photo/875413.
Fonte do artigo: SindJustiça Ceará
2 Comentários:
Que coluna maravilhosa de ler. O senhor escreveu tudo o que eu sempre pensei. Sou fisioterapeuta intensivista e não chAmo médico algum de doutor e nem uso dr antes do meu nome, mesmo meu conselho nos "obrigando" a usar. Sempre achei que a palavra doutor dá uma impressão de rico e o quem o chama assim é pobre. Um exemplo disso são as novelas da Globo, que colocam título de doutor em todo personagem rico. Parabéns!!! Adorei seu blog.
Pois é, Priscilla!
Quero ver se o sujeito vai ser chamado de "Doutor" quando se apresentar diante de Deus!
Nós homens e mulheres inventamos tanta tolice, não é mesmo ? E Deus é o simples! Fez-se criança, menino, para habitar entre nós!
Deus a abençoe sempre!
Álvaro Amorim.
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