Nesta série de artigos sobre Bioética, transcrevo trechos importantes do que afirmou o Pontifício Conselho para a Família, na pessoa do Cardeal Alfonso López Trujillo[1], sobre clonagem. (Grifos nossos):
“Com a palavra clonagem referimo-nos à técnica frequentemente utilizada em biologia para reproduzir células e microorganismos, quer vegetais quer animais, e mais recentemente para reproduzir sequências de informação genética contida nos materiais biológicos, como fragmentos de DNA (ácido desoxirribonucléico), no qual está codificada a informação genética nuclear de muitas espécies.
Considerando a finalidade, a clonagem é um procedimento técnico de reprodução, mediante a qual é manipulado o material genético de uma célula ou de um organismo (vegetal ou animal) com a finalidade de obter um indivíduo ou um conjunto de indivíduos geneticamente idênticos ao primeiro. O que distingue a clonagem de outras técnicas semelhantes é o fato de que na clonagem a reprodução se realiza sem união sexual (assexual), e sem fecundação ou união dos gametas (agâmica), sendo o resultado de um conjunto de indivíduos biologicamente idênticos ao primeiro indivíduo, que forneceu o conjunto genético nuclear.
Não existem especiais objeções éticas à clonagem de indivíduos [animais] (para obter descendência deles) e de materiais biológicos não humanos (para empregá-los em vários usos), quando é feita de modo responsável, assim como não existem objeções éticas ao tradicional e antiguíssimo uso de técnicas deste gênero no âmbito vegetal, que tem vantagens consideráveis. Não há dúvida de que a utilização da clonagem em zoologia [animais] pode originar grandes benefícios. As melhorias na reprodução de animais de criação, a redução dos custos de produção de certas carnes, a eventual aplicação da clonagem para salvar espécies em vias de extinção, os progressos na condição de experimentação e investigação em farmacologia, por exemplo, fazem com que seja aconselhável continuar a investigação de aplicações das técnicas de clonagem nas espécies animais.
Apesar disso, é necessário realçar que a utilização destas técnicas mostra ainda incertezas que devem ser atentamente examinadas. Podem vir a ter, no futuro, consequências imprevistas ? Podem, por exemplo, causar deformações genéticas perigosas, que hoje ainda são desconhecidas, ou não suficientemente conhecidas ? Em que medida isto pode envolver alterações, a médio e a longo prazo, no meio ambiente, na ecologia ? Uma prática descontrolada da clonagem poderia acabar por desencadear novas doenças e deformações ?
A problemática da clonagem de embriões humanos, como se apresenta hoje, configura-se essencialmente em duas versões possíveis: clonagem "reprodutiva" e clonagem "terapêutica" (ou para investigação científica). A diferença entre as duas reside sobretudo na finalidade que se pretende alcançar: a primeira tende para o desenvolvimento completo do sujeito mediante a implantação no útero (clonagem "reprodutiva"); na segunda pretende-se utilizar o embrião em estado de pré-implantação com a finalidade de investigação para fins sobretudo terapêuticos (clonagem "terapêutica", ou para a investigação científica). A finalidade para realizar a clonagem seria, por conseguinte:
1. Obter uma descendência humana e estabelecer uma técnica de procriação assistida mais eficaz, com uma maior e melhor aplicabilidade em certos casais (clonagem "reprodutiva").
2. Obter, mediante esta técnica, embriões "sintéticos" (assim são chamados) ou "acúmulos de células" (nas etapas embrionárias humanas primitivas, cada uma das células do embrião é totipotente [capacidade que uma célula tem de gerar todas as células e os tecidos de um organismo completo] ou multipotente [capacidade que uma célula tem de gerar células e tecidos diferenciados de uma parte do organismo, mas não de todos e de cada um deles, nem de um indivíduo completo], dos quais [dos embriões] se extraem células estaminais [células indiferenciadas que podem originar cópias exatas de si mesmas de maneira definitiva, capazes de produzir células especializadas dos tecidos do organismo, como o músculo cardíaco, o tecido cerebral, hepático, o miolo ósseo], sem deixar que se verifique a implantação no útero materno).
[Sobre o clone humano]:
[O clone] seria sempre a sua sombra [a sombra da pessoa que o originou], o modelo, o vestígio onipresente a ser seguido e evitado. "Ser cópia" tornar-se-ia parte da sua identidade, do próprio ser e da sua consciência. Desta forma seria provocada uma ferida ao direito que o homem tem de viver a sua própria vida como uma descoberta original e irrepetível, uma descoberta, no fundo, de si mesmo. Desta forma, o seu percurso vital tornar-se-ia a pesada realização de um "programa de controle" desumano e alienador.
A clonagem terapêutica para a obtenção de células estaminais implica não só a produção de um embrião, mas também a sua manipulação e a ulterior destruição. Não é aceitável considerar um ser humano, em qualquer etapa do seu desenvolvimento, como um "material" de armazém, ou fonte de tecidos e órgãos, de "peças de substituição". Podemos compreender melhor a complexidade moral da clonagem se considerarmos que aquilo que seria produzido, manipulado e destruído não são coisas, mas seres humanos como nós. Uma forma de enfrentarmos esta questão seria pormo-nos na situação, não dos cientistas que realizam a clonagem, mas na situação do embrião (como também nós fomos). Certamente não seria agradável nascer num laboratório, em vez de ser o fruto da união dos nossos pais. Nem seria agradável ser o sobrevivente entre dezenas ou centenas dos nossos irmãos gêmeos eliminados porque "tinham defeitos". Muito menos agradável seria, depois, ser manipulado para produzir "peças" das quais outros precisam (os rins, por exemplo); nem morrer depois desta breve e atormentada vida "produzida" precisamente para esta finalidade.
O ser humano, qualquer que seja a sua condição econômica, física, intelectual, não pode ser usado como um meio, um objeto. A maldade da ofensa a este princípio fundamental agrava-se quando este ser humano não tem meios para se defender contra o agressor injusto. Se alguém aceita tratar um ser humano como meio e não como fim, então deve aceitar, ele próprio, poder ser tratado do mesmo modo. E não deverá protestar. Mesmo se a aplicação terapêutica das células estaminais obtidas através da criação-destruição de embriões humanos tivesse sido claramente mostrada (o que não se verificou), a moral, a sensatez e o bom juízo opor-se-iam: não se pode fazer o mal por uma boa causa. O fim não justifica os meios. A história da humanidade é rica de ensinamentos a este propósito. Como dizia o filósofo J. Santayana, "Quem não conhece a história está condenado a repeti-la".
A clonagem humana que poderia levar ao nascimento de um ser humano deve ser julgada como um método imoral de procriação artificial. Na "clonagem terapêutica", este processo é intencionalmente interrompido: cria-se, de modo voluntário, um embrião humano para depois o destruir, com o fim de extrair células estaminais embrionárias. Eticamente este procedimento é pior ainda. Aceitá-lo seria como aceitar uma igualdade radical entre a espécie humana e as outras (P. Singer). Rejeitar a possibilidade de matar uma vida humana para curar outras vidas humanas não provém de uma posição especificamente religiosa, mas da força de argumentos e de razões de bom senso e da força de uma antropologia coerente e de uma bioética personalista.
Existe também um importante fator ético que se deve considerar, e que muitas vezes é descuidado. O ser humano é um ser social. A dinâmica sexual e procriativa no homem desenvolve-se naturalmente num contexto em que sexualidade e procriação se inserem harmoniosamente na realidade do amor conjugal que dá pleno sentido à sexualidade humana aberta à vida. Amor e responsabilidade encontram-se no matrimônio na abertura à vida e continuam na tarefa educativa, mediante a qual os pais exercem de modo integral o cuidado dos seus filhos.
A clonagem humana interrompe toda esta dinâmica. Na clonagem, a vida mostra-se como um elemento completamente externo à família. O embrião "mostra-se", por assim dizer, à margem não só da sexualidade, mas também de uma genealogia. Cada ser humano tem o direito de nascer do amor integral físico e espiritual de um pai e de uma mãe, de receber os seus cuidados, de ser acolhido como um dom pelos pais, de ser educado. Quando surge no horizonte a possibilidade inquietante de fazer com que a vida do ser humano concebido possa ser manipulada, submetida a experimentações, para depois ser destruída, quando são obtidas do embrião as células ou os conhecimentos biológicos procurados, então é o próprio conceito de filiação e de paternidade-maternidade a ser posto em crise, e a própria idéia de família é destruída.”
Shalom!
Álvaro Amorim.
Consagrado na Comunidade Católica Shalom.
[1] Cardeal Alfonso López Trujillo. Clonagem: Desaparecimento da Progênie e Negação da Família. Pontifício Conselho para a Família. In: www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/family/documents/rc_pc_family_doc_20030808_cloning-trujillo_po.html+"reflexões+do+cardeal+trujillo"&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br
Imagem: http://www.sxc.hu/photo/257791
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