Quem sou eu ?

    
     Dando prosseguimento à série de artigos sobre Bioética, falo agora sobre a identidade humana. 
     Sobre este tema, muito oportuna é esta frase de um filósofo atual:
     "Nenhuma época soube tantas e tão diversas coisas do homem como a nossa. Mas em verdade, nunca se soube menos o que é o homem." (Martin Heidegger).
     E a frase deste profeta de hoje é fundamental acerca deste assunto:
     “Santidade, única forma de ser plenamente homem.” (Moysés Azevedo).

     Depois de vermos os dois primeiros artigos, passamos a saber de quem viemos — de Deus —, e esta verdade fundamental nos faz valorizar adequadamente nossa vida, a qual tem valor divino. Numa palavra: conhecemos nossa origem e nosso valor. Agora podemos meditar sobre quem somos nós, o que nos define, qual a nossa essência mais profunda, o que nos individualiza.

     1. Auto-identificações inadequadas:
     Neste mundo tão marcado pelo afastamento do homem e da mulher em relação a Deus, vê-se que, cada vez mais, o ser humano não sabe quem ele é. Se, por exemplo, pararmos uma pessoa num “shopping center” e lhe perguntarmos quem ela é, poderemos ouvir frases do tipo:
     • “Por que você quer saber ?”;
     • “Eu sou fulano de tal” (dando só o nome);
     • “Eu sou médico, sou especialista em endocrinologia”;
     • “Eu sou simplesmente alguém”;
     • “Eu sou um atleta, malho todo dia, tenho 50 de braço!”;
     • “Eu sou uma mulher, não está vendo ?”

     Estes são apenas alguns exemplos de respostas a uma pergunta simples, mas profunda: Qual a sua identidade, a sua essência ? Como você se identifica ?
     Vendo as respostas acima, podemos perceber que algumas são totalmente inadequadas para definir alguém; outras não conseguem abranger toda a essência de uma pessoa — falta muito mais!
     Na verdade, na cultura de morte em que vivemos, “separado de Deus pelo pecado, o homem separa-se também dos outros, do criado e de si mesmo, tornando-se incapaz de ver-se como Deus o vê, de conhecer-se como Deus o conhece.” O ser humano passa então a identificar-se corporalmente, psiquicamente, mas dificilmente ontologicamente, ou seja, pelo “ser”, por quem realmente é.
     Passemos agora a analisar os três processos de auto-identificação, a partir do que nos ensinam Emmir Nogueira e Silvia Lemos, no clássico Tecendo o Fio de Ouro.

     1.1. Auto-identificação corporal:
     “Alguns se auto-identificam a partir da aparência externa, do seu corpo, do seu jeito de vestir, de falar, de comportar-se. É um processo inadequado de auto-identificação, intitulado de auto-identificação a nível corporal.
     Evitar este tipo de auto-identificação não significa, de forma nenhuma, desprezar ou maltratar o próprio corpo. Significa, sim, auto-identificar-se a partir do corpo e não a partir de sua identidade como um todo.
     As pessoas que se auto-identificam a nível corporal dão excessivo valor à aparência, à beleza física, à juventude, à saúde, à moda, aos comportamentos sociais, ao prestígio e adequação a um nível social mais elevado que o seu, e avaliam os outros pelo mesmo padrão. Seu estilo de vida, comportamento e relacionamentos são pautados por estes valores.
     Ao se identificarem a nível corporal — o mais superficial dentre os níveis de auto-identificação, nível típico da adolescência —, correm o risco de sofrerem sérias deformações em seu processo de auto-identificação adequada e amadurecimento humano, assim como de perderem o sentido da vida quando seu corpo é atingido por doenças ou quando envelhecem, a ponto de dizer, como certa atriz, que se alguém quer conhecer o que é o inferno basta envelhecer.”

     1.2. Auto-identificação psíquica:
     “O tipo de auto-identificação mais superficial é, sem dúvida, aquele do nível corporal. Logo em seguida, vem o que se chama de auto-identificação a nível psíquico. Refere-se a pessoas que colocam a positividade de seu ser e o sentido de sua vida naquilo que sabem, que fazem, que podem, que possuem, pelo que produzem ou realizam.
     Este tipo de auto-identificação cobra da própria pessoa e dos que convivem com ela um alto preço, pois, sendo parcial e superficial, escraviza a pessoa ao que ela valoriza em si, mas que está longe de ser a verdade essencial sobre ela mesma, que seria a auto-identificação a nível ontológico, isto é, a nível do ser, nível correspondente à sua verdadeira identidade.
     Todos conhecemos pessoas que se auto-identificam assim e que acabaram por perder o sentido de suas vidas quando se viram impossibilitadas de produzir ou possuir, devido a uma enfermidade ou a um evento de empobrecimento, aposentadoria, mudança de cidade, [desemprego]. Depressão e suicídio não são raros nestes casos.”

     1.3. Auto-identificação corporal, psíquica e ontológica:
     “Em grau maior ou menor, todos nos auto-identificamos tanto a nível psíquico quanto a nível corporal e ontológico. Nunca poderemos dizer, portanto, que nos auto-identificamos somente a um nível.
     A forma de auto-identificação pode variar, também, de acordo com nossa etapa de vida, nosso estado físico ou psíquico, os estímulos externos. É natural que um adolescente auto-identifique-se a nível corporal, por exemplo. No entanto, tal identificação já seria de preocupar em uma pessoa adulta.
     Ainda que nos identifiquemos em vários níveis concomitantemente [ao mesmo tempo], há sempre uma proporcionalidade permanente que nos indicará qual nossa tendência no que se refere à vivência do processo de auto-identificação e à auto-identidade, isto é, à vivência de nossa identidade mais profunda e verdadeira.”

     2. Auto-identificação adequada:
     Mais uma vez, citamos nossas irmãs Emmir Nogueira e Silvia Lemos:
     “Amedeo Cencini descreve a auto-identificação a nível ontológico, isto é, auto-identificação adequada, a nível do ser, como uma contínua tensão entre o já e o não ainda, termos tantas vezes utilizado na teologia para descrever o estado peregrino do cristão rumo à perfeição.
     Uma realista tensão entre o que somos, orientada para o que não somos ainda, mas que é a vontade de Deus para nós, esta seria a humilde, verdadeira e realista auto-identificação a nível ontológico. Cencini denomina esta situação de constante marcha como a tensão entre o eu atual (o que sou agora) e o eu ideal (o que Deus pensa de mim).
     No livro "O Corpo, Templo da Beleza", Jo Croissant comenta, acerca do conhecimento de Deus como premissa [ponto de partida] para nossa adequada auto-identificação:
     ‘Quanto mais conhecemos a Deus, melhor compreendemos o que significa ´o homem criado à sua imagem e à sua semelhança’, melhor aderimos ao que somos, pois é Ele quem nos dá a nossa identidade: ´Meus amados, desde agora somos filhos de Deus, e o que seremos ainda não se manifestou. Sabemos que no momento desta manifestação nós lhe seremos semelhantes, porque o veremos tal como ele é’ (I Jo 3, 2).
     Já: somos filhos de Deus. Não ainda: o que seremos ainda não se manifestou. A auto-identidade ideal nos é dada pelo conhecimento de Deus, pela contemplação de quem Ele é e pelo desejo sincero de fazer a sua vontade para nós. Dele recebemos nossa identidade, com sua graça aderimos, alegres e confiantes, a quem somos aos seus olhos. A tensão positiva de caminhar entre o já e o não ainda, entre o eu atual e o eu ideal será coroada de vitória quando estivermos diante de Deus e nos virmos semelhantes a Ele porque o contemplaremos tal como Ele é.
     Esta tensão salutar é vivida, evidentemente, a nível da identidade de filho de Deus. Chamado à santidade, vivo o desejo de ser cada vez mais semelhante a Jesus, a quem amo e conheço e, entretanto, sou forçado a encarar o fato de ainda não ser semelhante a Ele. É o “ai de mim” de São Paulo: não faço o bem que quero, mas o mal que não quero! (Rm 7, 15). É seu espinho na carne, que o faz — como a nós — aprender que, nesta tensão entre o “já” e o “não ainda”, entre o “eu atual” e o “eu ideal”, entre a auto-identificação equivocada e aquela adequada, basta-nos a graça de Deus.”

     2.1. Filiação divina:
     Pelo nosso Batismo, somos recriados como filhos no Filho. Em Jesus Cristo, o Pai, que nos havia criado, que viu tristemente o pecado original de nossos primeiros pais nos afastar dele, proclama alegremente: “Este meu filho estava morto, e reviveu; tinha se perdido, e foi achado.” (Lc 15, 24).
     “Os diferentes efeitos do Batismo são significados pelos elementos sensíveis do rito sacramental. O mergulho na água faz apelo ao simbolismo da morte e da purificação, mas também da regeneração e da renovação. Os dois efeitos principais são, pois, a purificação dos pecados e o novo nascimento no Espírito Santo.”
     Espiritualmente, nascemos de novo, o Pai nos faz ressurgir com Cristo. Somos, portanto, seus filhos.
     O Batismo assim imprime um caráter indelével, uma marca inapagável, em nosso ser, molda nossa identidade mais profunda, mais essencial: somos filhos de Deus. Isto é algo que jamais passará, que não poderá ser eliminado, apagado, retirado, mesmo se resolvermos abandonar Deus totalmente. Haja o que houver: para sempre somos filhos de Deus! Isto é o que nos define mais profundamente, quem nós somos.
     “O Batismo não somente purifica de todos os pecados, mas também faz do neófito [quem acabou de receber o Batismo] “uma criatura nova”, um filho adotivo de Deus que se tornou “participante da natureza divina”, membro de Cristo e co-herdeiro com ele, templo do Espírito Santo.”
     Portanto, se alguém nos perguntar quem nós somos, a primeira resposta que devemos dar, depois de dizer o nosso nome, com plena certeza, com toda a convicção, é: sou filho de Deus (ou: sou filha de Deus). Não há em nós algo que nos defina tão intensamente, tão verdadeiramente como a nossa filiação divina.

     2.2. Sexualidade:
     Atualmente há uma enorme confusão nesta dimensão da identidade.
     Muitas pessoas confundem sexualidade com afetividade, consideram que a primeira está inserida na última, que não existe uma identidade sexual, mas que há “gênero”, uma “escolha” que a pessoa poderia fazer. Diz-se que existiria a possibilidade de “orientar”, de optar pelo gênero. Outros ainda afirmam que há em todo ser humano uma dimensão masculina e uma feminina, e que todos podem “desenvolver” a dimensão que escolherem, ou ambas.
     “É fácil verificar o engano destas teorias diante do que nos ensinam a Palavra e a Igreja: Deus criou o homem, criou-o à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. (Gn 1, 27). Disse a ambos: Frutificai, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. (Gn 1, 28). O que for diferente disso não vem de Deus.”
     A minha sexualidade encontra-se na minha identidade e não nos meus afetos. É, portanto, algo que Deus imprimiu em mim ao me criar por amor e para o amor.
     A grande dificuldade que algumas pessoas têm para admitir que não lhes cabe escolher, definir sua sexualidade, que isto foi algo escolhido por Deus — que é livre e soberano, que nos criou livremente —, reside no fato dessas pessoas acharem que, por serem “livres”, têm “poder” para tudo, inclusive na dimensão da determinação da sexualidade. No fundo, é sempre a velha tentação que privou nossos primeiros pais da amizade plena com Deus: o ser humano não quer apenas ter a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, mas quer ter o “poder” de ditar o que é bem e o que é mal, capacidade esta que pertence somente a Deus.
     Essas correntes de pensamento consideram que a pessoa é livre quando tem “o direito de fazer o que quer, do jeito que quer e quando quer”; acham que alguém é livre quando tem total domínio sobre sua vida, quando é o único senhor de sua vida. Ora, bem sabemos que essa “liberdade” é falsa, pois não está fundamentada na responsabilidade, o que gera violência e desamor.
     Sobre este tema, o Papa Bento XVI, na Vigília de Pentecostes de 2006, disse:
     “Espontaneamente, penso que a esmagadora maioria dos homens tem o mesmo conceito de vida do filho pródigo, no Evangelho. Ele pediu a parte de patrimônio que lhe cabia, e agora sentia-se livre, queria finalmente viver já sem o peso dos afazeres de casa, queria simplesmente viver. Receber da vida tudo o que ela pode oferecer. Gozá-la plenamente, viver, só viver, beber na abundância da vida e nada perder daquilo que de precioso ela pode oferecer. No final, acabou por se tornar guardião de porcos e chegou mesmo a invejar aqueles animais tão vazia se tinha tornado esta sua vida, tão inútil! E vã revelava-se inclusive a sua liberdade. Porventura não acontece também assim nos nossos dias ?
     Quando o homem quer somente apoderar-se da vida, ela torna-se cada vez mais vazia, mais pobre; termina-se facilmente por se refugiar na droga, na grande ilusão. E emerge a dúvida se, no final de contas, viver é verdadeiramente um bem. Não, deste modo nós não encontramos a vida. A palavra de Jesus sobre a vida em abundância encontra-se no discurso do Bom Pastor. É uma palavra que se põe num duplo contexto. Sobre o pastor, Jesus diz-nos que ele entrega a sua vida. "Ninguém tira a minha vida, mas sou eu que a ofereço livremente" (cf. Jo 10, 18). A vida só se encontra, quando é doada; ela não pode ser encontrada, desejando tomar posse dela. É isto que devemos aprender de Cristo; é isto que nos ensina o Espírito Santo, que é puro dom, que é o doar-se de Deus. Quanto mais alguém entrega a sua vida pelos outros, pelo próprio bem, tanto mais copiosamente corre o rio da vida. Em segundo lugar, o Senhor diz-nos que a vida desabrocha, quando caminhamos em companhia do Pastor, que conhece as pastagens, os lugares onde brotam as nascentes da vida. Encontramos a vida na comunhão com aquele que é a vida em pessoa, na comunhão com o Deus vivo, uma comunhão em que somos introduzidos pelo Espírito Santo, denominado no hino das Vésperas como "fons vivus", fonte viva. A pastagem, onde correm as fontes da vida, é a Palavra de Deus como a encontramos na Escritura, na fé da Igreja. A pastagem é o próprio Deus que, na comunhão da fé, aprendemos a conhecer através do poder do Espírito Santo.
     [...]
     O tema da liberdade já foi mencionado há pouco. Com a partida do filho pródigo estão vinculados precisamente os temas da vida e da liberdade. Ele deseja a vida e por isso quer ser totalmente livre. Nesta visão, ser livre significa poder fazer tudo o que desejo; não ter que aceitar qualquer critério fora e acima de mim mesmo. Seguir exclusivamente o meu desejo e a minha vontade. Quem vive assim embater-se-á depressa com o outro que quer viver desta mesma maneira. A consequência necessária deste conceito egoísta de liberdade é a violência, a destruição recíproca da liberdade e da vida. Ao contrário, a Sagrada Escritura une o conceito de liberdade ao de progenitura. São Paulo diz: "Vós não recebestes um Espírito que vos escraviza e volta a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adotivos. É por ele que clamamos: Abbá, ó Pai!" (Rm 8,15).”

     Portanto, quem se diz livre por achar que tem “o direito de fazer o que quer, do jeito que quer e quando quer”, como disse o Papa Bento XVI, “embater-se-á depressa com o outro que quer viver desta mesma maneira” também. Isto obviamente gerará ódio e violência. No fim, esta falsa liberdade escravizará o ser humano.
     Não é isto o que vemos em tantas famílias, nas quais o pai faz tudo do jeito que quer, a mãe, também, os filhos vivem fugindo dos pais, fazendo o que querem nas suas turmas ? E quando se reúnem todos, o que ocorre ? Discussões, brigas, violência, ausência de diálogo, de aceitação do outro. Numa palavra: desamor! E tudo isso gera a “vida de morte”, que tantas famílias experimentam, com o adultério, a separação dos casais, a agressão física, a adicção de drogas, todas as formas de prostituição, a depressão, o suicídio. Querendo inicialmente “viver sua liberdade”, cada um escravizou-se e embateu-se, chocou-se com o outro.
     Sem a responsabilidade, a liberdade vira escravidão! Sem a verdadeira liberdade de quem age como filho (ou filha) de Deus, não pode haver amor!
     Para vivermos nossa identidade sexual (ser homem ou ser mulher), a responsabilidade, a liberdade e o amor são fundamentais.
     Vejamos cada fundamento destes e sua relação com a identidade sexual:

     • Responsabilidade: capacidade de responder. Como pessoa, posso responder ao chamado que Deus me fez ao me criar homem (ou mulher), vivendo a minha identidade sexual.
     • Liberdade: atributo do filho (ou da filha) de Deus. Como filho (ou filha) de Deus, posso acolher livremente, sem “determinações” do passado, minha identidade de homem (ou de mulher).
     • Amor: “Deus é amor” (I Jo 4, 8). Vivendo no Amor, em Deus, vivo como sou, plenamente homem (ou plenamente mulher).

     Esclarecedor sobre o tema da identidade sexual é o relato de Octavio Balderas, professor de Antropologia e Psicologia no Curso de Teologia da Pontifícia Universidade Salesiana, em Roma , transcrito no livro Tecendo o Fio de Ouro, páginas 412 e 413, de Emmir Nogueira e Silvia Lemos:
     “No ser humano, a sexualidade não é acidental, mas constitutiva e determinante. Assim, uma avaliação correta da sexualidade humana só pode ocorrer à luz da pessoa total e de seu processo. De uma perspectiva mais completa, pode-se dizer que ‘o homem [o ser humano], enquanto existente, estende-se e afirma-se em duas formas concretas, polares e complementares de ser: como masculino e como feminino. Masculino e feminino são o homem [o ser humano] em sua afirmação e realização. Não são dois modos contraditórios de ser homem [humano], mas dois modos de alteridade sexual que se supõem e se implicam, enquanto manifestam o modo de ser homem [humano]’. A essência humana é vivida necessariamente como homem e como mulher.
     A sexualidade é uma dimensão ou qualidade fundamental, que atravessa os níveis bio-psico-espirituais do ser humano. Esses, assim, configuram-se essencialmente como masculinidade ou feminilidade.
     A nível biológico, a identidade sexuada vem expressa não somente a nível orgânico, mas também a nível de células. (...) Além das expressões genéticas, há ainda as que se referem ao funcionamento endócrino e nervoso, sem mencionar o cerebral.
     A nível psicológico, as diferenças sexuais referem-se à percepção da realidade, o modo de comunicar-se com ela a nível afetivo e as predisposições gerais. A mulher é preparada para dominar espaços mais estreitos e para o cuidado das pessoas, o que lhe dá uma sensibilidade mais fina, um conhecimento mais intuitivo e a busca da convivência por si mesma. A mulher é mais sensitiva. O homem é preparado para dominar espaços amplos e fazer trabalhos mais pesados, consequentemente seu pensamento é mais analítico e conceitual (precisa saber como atingir as metas). O homem é mais voluntarista. Neste contexto, podem-se colocar as normas culturais que influenciam de diversas maneiras a vivência e a conduta sexual de cada indivíduo.”

     Podemos, então, estabelecer alguns pontos essenciais para a compreensão e aceitação da nossa sexualidade:
    
     • Deus é plenamente livre;
     • Deus me criou por amor, para que eu o ame e ame meus irmãos;
     • Deus me criou livre, e somente sou verdadeiramente livre quando sou responsável;
     • Deus me criou homem (ou: Deus me criou mulher);
     • A sexualidade (ser homem ou ser mulher) veio “embutida” na minha identidade, já está na minha identidade, é também minha identidade, desde a minha criação;
     • Sou chamado a viver minha sexualidade (ser homem ou ser mulher) de maneira responsável, na verdadeira liberdade, ordenando-a para o amor.

     Sabemos que há muitas pessoas, filhas amadas de Deus, que enfrentam desafios em sua identidade, especificamente na dimensão da sexualidade. Por vezes, esses desafios são tão grandes que essas pessoas dizem que não os possuem, que são “felizes sendo assim mesmo”, que “escolheram livremente ser desse modo”, ou que “o destino levou-as a viver assim”.
     Todavia, nos acompanhamentos que tivemos com pessoas que ainda não se identificam com a sexualidade que Deus lhes deu como dom, percebemos, mesmo que às vezes velado, escondido, o profundo sofrimento que elas carregam em sua alma. Não sofrem apenas pelas discriminações, mas sobretudo porque vivem não como verdadeiramente são, ou seja, não vivem sua essência profunda, sua identidade, mas vivem uma pseudo-identidade.
     Essas pessoas como que se desviam de quem verdadeiramente são: homem ou mulher; projetam uma imagem de si para si mesmas e para os outros. Vivem na imagem, na representação, sempre se forçando para “ser” alguém diferente de quem realmente são.
     A Igreja, Mãe que acolhe todos os seus filhos, ensina-nos, no seu Catecismo, a, sobretudo, amar essas pessoas, a orar por elas, a sermos seus amigos, a trazê-las para junto do nosso coração, levando-as assim ao Coração de Deus, Jesus Cristo:
     2358. Um número não negligenciável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente enraizadas. Esta inclinação objetivamente desordenada constitui, para a maioria, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus em sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição.
     2359. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes de autodomínio, educadoras da liberdade interior, às vezes pelo apoio de uma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem se aproximar, gradual e resolutamente, da perfeição cristã.

     As pessoas que não possuem uma adequada auto-identificação quanto à sua sexualidade podem, ainda, além de contar com a graça de Deus e a ajuda dos irmãos, iniciar um acompanhamento psicoterapêutico apropriado (com um(a) psicólogo(a) cristão que veja e aborde o tema da sexualidade como dimensão da identidade humana, e não como uma “orientação”), o que lhes ajudará no processo livre de auto-identificação sexual adequada, “porque a Deus nenhuma coisa é impossível” (Lc 1, 37).

     2.3. Vocação carismática:
     “Movimentos e novas Comunidades, expressões providenciais da nova primavera suscitada pelo Espírito com o Concílio Vaticano II, constituem um anúncio do poder do amor de Deus que, superando divisões e barreiras de todo o gênero, renova a face da terra, para construir nela a civilização do amor.” (Servo de Deus João Paulo II).
     “O Carisma de uma Fundação (Comunidades Novas, Movimentos Eclesiais, Famílias Religiosas) é uma graça dada a um fundador e a seus discípulos em favor da Igreja e da humanidade como auxílio profético de Deus para um tempo histórico particular.
     O Carisma é manifestado pelo fundador e vivido por ele e por seus discípulos, ambos criados com a mesma identidade do Carisma. Daí porque um vocacionado aderirá a um Carisma pelo processo de “identificação”: “Quero viver o que vocês vivem e da forma como vocês vivem”. Isso sinaliza que reconhece em si mesmo, em sua própria identidade, a identidade do Carisma que traz em si e é vivido pelos demais discípulos (membros da comunidade, movimento ou família religiosa).”

     O Carisma no qual Deus me criou é o meu eu ideal, meu chamado à santidade, ou seja, à plena felicidade, a ser plenamente quem eu sou. Numa palavra: é a minha identidade mais profunda!
     Viver o Carisma que me “inabita” é viver eu mesmo, é ser eu mesmo, é, portanto, ser feliz!
     “Receber de Deus um Carisma é uma eleição. Para utilizar a imagem da cômoda, poderíamos dizer que há pessoas que são criadas “sem a gaveta do Carisma”. Isso não as faz menos dignas ou menos amadas ou menos chamadas à santidade de filhas de Deus.”
     “Infelizmente, pessoas que não são chamadas a uma vocação particular no sentido de abraçar o Carisma de um Instituto (comunidade nova, comunidade religiosa), algumas vezes, consideram-se inferiores às que são chamadas, quase como se fossem cristãos de segunda categoria.
     Nada menos exato. Cada um tem seu lugar e sua missão no Corpo de Cristo. O batizado é chamado a ser um outro Cristo, não no sentido estrito de um Carisma específico, mas no sentido largo do Evangelho. Ser no mundo outro Cristo é seu eu ideal, sua identidade, seu chamamento, ao qual deve obedecer com grande gratidão e amor Àquele que o chama.”

     2.4. Estado de vida:
     A expressão do amor a Deus e aos irmãos ocorre mais plenamente na vivência do estado de vida, o qual consiste em um modo de viver a caridade de Cristo na Igreja para toda a humanidade.
     Assim, meu estado de vida é a dimensão da minha identidade que me faz amar como Cristo ama, expressar esse amor a Deus e aos irmãos.
     É dimensão da minha identidade porque me identifica, me define, diz quem eu sou: casado, sacerdote ou celibatário pelo Reino de Deus.
     Há também a forma de vida de solteiro, que não traz em si a graça de estado, que é permanente, pois a pessoa solteira pode, por exemplo, em determinado momento, descobrir que é chamada por Deus ao celibato pelo Reino e, assim, deixar de ser solteira. Porém, quem é sacerdote, quem vive o estado de vida do sacerdócio, é sacerdote para sempre.
     Jesus Cristo foi quem instituiu os três estados de vida:
     • O celibato consagrado: O Pai imprimiu na identidade humana de Jesus o estado de vida do celibato, o que fez Jesus doar-se todo, também em seu corpo, em favor de todos nós, sem mediações, pois ele mesmo é o Mediador entre o Pai e os homens;
     • O matrimônio: “Jesus retomou o matrimônio vivido no Antigo Testamento, elevou-o à caridade, exclusividade e fidelidade em Mateus 19, 1-9, configurou-o como um sacramento da Nova Aliança nas Bodas de Caná (Jo 2, 1-11) e, por diversas vezes, utilizou-o como imagem de sua união com a Igreja nas parábolas referentes às Bodas. [...] Jesus estabeleceu o matrimônio como sacramento, sinal de sua união com a Igreja e da unidade intratrinitária. Ele mesmo fez-se esposo que dá a vida pela esposa infiel, conforme haviam anunciado os profetas.”
     • O sacerdócio: “Em sua identidade humana de celibatário, do sexo masculino, Filho de Deus, Jesus acolheu também a identidade e missão de sacerdote. O sacerdócio não foi vivido por Ele como no Antigo Testamento, inclusive porque não era da tribo de Levi. Viveu-o ofertando-se a si próprio, uma vez que o Pai não se agradava do sacrifício de animais. Fez-se a si próprio sacerdote, vítima e altar. Isto é, ofereceu a si mesmo em seu corpo, que é no altar, o Novo Templo. Como sacerdote, Jesus viveu, inexorável e inseparavelmente, o celibato e a masculinidade. Do ponto de vista da identidade humana, não há como separar do sacerdócio, vivido no corpo [...], a masculinidade e a castidade.”

     Por ser algo tão sério, que diz respeito à nossa identidade, o estado de vida precisa ser descoberto, discernido, mediante a oração constante e o acompanhamento de um(a) irmão(ã) mais experiente na caminhada. É dimensão da identidade. Basta ser discernido, acolhido, aceito e vivido.
     “Muito da confusão acerca da esfera da pessoa humana que abriga o estado de vida advém, talvez, do fato de que um dos estados de vida seja o matrimônio, que envolve, necessariamente, um nível relacional bastante profundo e carregado de afeto e apaixonamento por uma pessoa do outro sexo. Só que também o celibato ou sacerdócio envolvem um nível relacional profundo e também carregado de afeto e apaixonamento, mas sem o envolvimento do relacionamento sexual.”

     Por fim, eu e você podemos afirmar nossa identidade. No meu caso: eu sou Álvaro, filho de Deus, Shalom, casado. Nesta afirmação encontram-se todas as dimensões da minha identidade:
     • Sexualidade: Álvaro (nome masculino), sou homem;
     • Filiação divina: sou filho de Deus, pelo meu Batismo;
     • Vocação carismática: consagrado na Comunidade Católica Shalom, como Comunidade de Aliança Externa;
     • Estado de vida: casado com a Sabryna (consagrada na Comunidade Católica Shalom, como Comunidade de Aliança Externa).

     P.S.: Próximo post: O início da vida, a concepção.

     Shalom!
     Álvaro Amorim.
     Consagrado na Comunidade Católica Shalom.
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Creative Commons License

P.S.: Algumas citações não foram explicitadas, por motivos técnicos, mas eis a bibliografia deste artigo:
Moysés Azevedo. Carta à Comunidade, Páscoa de 2005, Edições Shalom, Fortaleza, 2005.
Emmir Nogueira e Silvia Lemos. Tecendo o Fio de Ouro, Ed. Shalom, Fortaleza, 2006.
Jo Croissant. O Corpo, Templo da Beleza, Ed. Shalom, Fortaleza, 2002.
Catecismo da Igreja Católica, Edição Típica Vaticana, Ed. Loyola, São Paulo, 2000.
Bento XVI, Papa. Homilia na Celebração das Primeiras Vésperas da Vigília de Pentecostes. Encontro com os Movimentos Eclesiais e as Novas Comunidades. 3 de junho de 2006. In: www.vatican.va.
João Paulo II, Papa. Homilia no Domingo de Pentecostes. 31 de maio de 1998, in www.vatican.va.

Imagem: http://www.sxc.hu/photo/1171403


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